Por mais calor humano

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Por Paula Guimarães*

Já escreveu Cecília Meireles: “Basta-me um pequeno gesto, feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve...”. Desta maneira gentil, talvez Cecília tenha desejado nos dizer que o simples pode ser o suficiente para aquecer e unir duas pessoas, dois corações. 

Hoje, estamos recebendo o convite do simples. Sem presentes caros, sem viagens ostentadoras, sem roupas de marca, sem games irados, sem a materialidade sedutora que faz apelos aos nossos instintos; e não se dirige ao amor verdadeiro de Jesus. 

E foi o doce Rabi da Galileia que nos ensinou que esta mesma materialidade seria corroída pela ferrugem, comida pela traça; porém  imperecível e verdadeiro era o seu amor. Amor este que O evangelho segundo o espiritismo1 nos adverte ser o sentimento sublime, capaz de nos conectar ao Criador e às criaturas de modo genuíno. Este mesmo amor não está relacionado às compras desnecessárias ou aos incontáveis supérfluos hoje produzidos como itens de primeira necessidade e comprados pelo homem incauto que quer aplacar a dor de sua consciência com as parcelas de um cartão de crédito. 

A realidade hoje

E o que temos hoje diante de nossos olhos? Não, não me refiro ao vírus; mas sim à oportunidade que este mesmo ser vivo nos convida: viver o simples.

A retomada da essência humana, eis a chance do momento presente. Dentre os posts que estamos recebendo hoje, retomarei um de delicada sinceridade através de uma paráfrase livre que agora segue:

Estamos tendo a chance de conviver com nossos pequenos filhos com muito mais proximidade. Sim, pode ser que, em um primeiro momento, os tablets e os muitos games ainda vençam o diálogo, porém, com o tempo, o convívio será resgatado e com ele os abraços, os olhares profundos e os silêncios carinhosos que antecedem um riso solto que vem sem explicação, mas com o amor de quem se entende sem precisar expressar palavra. 

E mais, com os filhos, aqueles já adolescentes, forma-se a chance de os conhecer melhor, saber de suas angústias e medos, bem como de seus sonhos reais, que podem ser não entrar para a medicina, como pregam muitos cursinhos pré-vestibulares como o bilhete premiado da felicidade, enquanto, de fato, ele ou ela gostaria de cursar engenharia de materiais ou letras, por exemplo; mas  isto, em tempos sem isolamento, não lhe garantia estar no ranking das profissões mais concorridas e supostamente mais bem sucedidas da atualidade. 

É tempo de ouvir o que faz sentido e não o que se pode pagar. Vou além: eis o tempo de cuidar de nossos velhinhos que nos colocam face a face com nossa fragilidade, com nossa impotência de agir frente ao hoje; apenas cuidar, zelar, amparar e, se não podemos estar em proximidade, fazer um vídeo, ligar com mais frequência, chamar pelo ‘zap’ para um papo demorado, pedindo que permaneçam em segurança. Ainda, é tempo de olhar para aquela pessoa amada com quem decidimos dividir a vida, os ideais, e dizer ‘eu te amo’, e resgatar as mãos dadas e a esperança do caminhar juntos, no amparo do ombro sempre presente que acolhe, protege, suporta e convive. Nosso Cirineu tão próximo que, muitas vezes, menosprezamos seu valor. 

E nossos amigos? Os queridos irmãos de alma que já dividiram tantos momentos conosco, que podem contar nossas histórias como se nós próprios fôssemos, ou ainda podem sentir o que sentimos sem que precisemos descrever o que nos vai no imo da alma!

 Preciso mencionar os alunos queridos, que tanto me ensinaram a repetir um conceito, a dar de novo a mesma explicação, a recorrigir um texto em suas entranhas para que pudessem alçar seus voos de crescimento e evolução; mal sabiam eles que me auxiliavam a cultivar a paciência, como muitos já me ouviram dizer, meu desafio desta reencarnação. 

A paciência de cultivar o amor, este amor crístico e sublime que palmilhamos a edificar na atualidade através do burilamento pela dor, pois que tudo o que acabamos de ler, vive a dor imposta pelos tantos descuidos humanos com ele próprio, com sua evolução. 

A grande lição

Reside em O livro dos espíritos um grande ensinamento que nos esclarece este cenário a duras penas, a questão 737: “Com que fim fere Deus a humanidade por meio de flagelos destruidores? R.: Para fazê-la progredir mais depressa…”.

 Somente esta frase já nos traria esclarecimento suficiente para compreendermos o momento atual. Cabe ressaltar que poderíamos evoluir tão depressa quanto se tivéssemos escolhido trilhar os caminho da benevolência, da indulgência e do perdão, o ‘BIP’ de Jesus, como usualmente nos referimos a esta tríade, uma das bases da caridade.

Entretanto, esquecemos de carregar a pilha do BIP, pois a azáfama para ganhar mais, para comprar mais, para ter mais bens materiais nos tomou o tempo da evolução que agora nos clama novos destinos por meio de um impulso que nos leva ao convívio mais próximo conosco mesmos e com os nossos, nos provando que sem Deus e Jesus não somos nada: a carteira cheia torna-se vazia, os planos inúmeros se desfazem aos poucos descuidados e tímidos, ou ainda se adiam, o orgulho e o egoísmo cingem seus joelhos ao chão indefesos frente à inevitável verdade: somos pequenos na materialidade. Mas podemos ser grandes com Deus.

A quarentena com Jesus

E agora necessário se faz que retomemos a quarentena de Jesus. Leiamos Mateus 4: 1-4: 1 Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 2 E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome; 3 E, chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães. 4 Ele, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (...)”.

 Sirvo-me deste trecho em que reside a primeira tentação para refletir sobre a simbologia que segue na palavra ‘pão’. Poderíamos lê-la como o real alimento material substancioso; também o poderíamos compreender como tudo aquilo que nos sacia a fome, ou ainda como tudo o que rodeia a vida humana, ou seja, seus utensílios de sobrevivência: casas, carros, cartões de crédito, roupas, sapatos, joias, perfumes. Estes itens garantem ao homem afeto verdadeiro? Respeito de fato por suas conquistas e lutas? Dignidade de valores? Ou representam crenças que fazem da persona que os possui um ser mais relevante nos ambientes sociais em que circula? 

Sim, sabemos ainda que existem duas espécies de progresso conforme O livro dos espíritos: o material e o moral. O primeiro é aquele que se vê em todos os avanços tecnológicos fruto da intelectualidade; o segundo é aquele através do qual encontraremos o caminho para ampliarmos nossa consciência quanto à importância de nos autodesenvolvermos como espíritos imortais. 

A questão somada a todas as outras acima é: de que servem hoje as casas, se estas não pagam a despedida dos que se vão tragados pelo vírus em sua saga destrutiva? E os carros, que não podem ser trocados pela cura? E os cartões de crédito, que não se liquefazem em proteção? E as roupas e sapatos e joias e perfumes, que não se podem trocar pelo abraço dos que se quer ter por perto, mas, hoje, devem estar em isolamento? 

O que, amigos, esta quarentena forçada nos quer ensinar? Aquilo que não escolhemos fazer enquanto livres estávamos: a amar indistintamente, a ter os nossos próximos do afago que queremos dar, da humanidade que estamos reaprendendo a ser. Frustrando nossas pequenezes, é também uma grande oportunidade de evoluirmos, crescermos, pois que podemos, tal qual a Fênix, renascermos em nós mesmos como pessoas melhores. 

Afinal, já nos ensinou Paulo de Tarso na primeira carta aos Coríntios 13: 11-12: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.” 

Que saiamos desta pandemia mais homens e menos meninos, vendo o todo, o coletivo; não somente a parte, a nossa parte individualista! Que o calor humano que estamos resgatando agora nos conduza ao amor de Jesus, pois sem este nós nada seríamos!

1 - Capítulo 11. 

*Oradora espírita, Paula Guimarães é coach e professora da Fundação Getúlio Vargas, nas áreas de comunicação e gestão de pessoas.